Alteração no regime da propriedade horizontal: o que a lei 8/2022 traz de novo?
NOTAS INTRODUTÓRIAS.
No Ordenamento jurídico português o Direito à Propriedade Privada é considerado um direito fundamental, consagrado na Constituição da República Portuguesa, em seu artigo n.º 62, n.º 1, que diz ser a todos garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte. E, no n.º 2, do mesmo preceito, é dito que a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização1.
Antes de mais, é importante destacar a ambivalência, no sentido abstrato do supramencionado direito fundamental. Numa primeira face, o direito à propriedade é a relação da pessoa singular ou coletiva com um determinado bem (dimensão positiva). Por outra perspetiva, esse direito gera um dever de não interferir naquele bem pelo restante da sociedade (dimensão negativa).
Por norma geral, a constituição do edifício e todas as suas construções e edificações recaem sobre um direito de propriedade. Entretanto existe uma exceção à esta regra: a propriedade horizontal.
No contexto do Direito à propriedade privada, existe ainda o instituto da Propriedade Horizontal, que é definido a partir da existência de um prédio dividido em frações autónomas, com diferentes proprietários, mas que culminam em uma parte comum do prédio ou em um espaço público. Podem as frações consistir em apartamentos, andares e até garagens.
Assim, na propriedade horizontal, estão presentes dois direitos reais diferentes: de um lado a propriedade singular e individual referente às frações autónomas, e de outro a compropriedade, no que toca às partes comuns.
A presente exposição irá analisar as inovações trazidas pela Lei 8/2022, de 10 de janeiro que faz uma revisão sobre o instituto da propriedade horizontal.
1 https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=4&tabela=leis
1. A LEI 8/2022 DE 10 DE JANEIRO E SUAS INOVAÇÕES.
A Lei 8/2022, de 10 de janeiro, revê o regime da propriedade horizontal e altera três diplomas legais: o Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro (que estabelece normas regulamentares do regime da Propriedade Horizontal), o Código Civil e o Código do Notariado.
Serve o presente para destacar as principais mudanças que entram em vigor 90 dias após a publicação, com exceção do artigo n.º 1437 do Código Civil – que trata da representação do condomínio em juízo pelo administrador – que entrou em vigor já no dia 11 de janeiro de 2022.
Com a intenção de setorizar as alterações, seguimos a dinâmica da publicação da própria lei em comento, pelo que abordaremos inicialmente as mudanças efetuadas no Código Civil, em seguida no Decreto-Lei 268/94 e por fim no Código do Notariado.
NO CÓDIGO CIVIL:
I – Título constitutivo
A nova lei traz a possibilidade de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal quanto às partes comuns, quando não há acordo entre os condóminos desde que os que não consintam a ela sejam inferiores a 1/10 do capital investido e que a modificação não altere as condições de uso, o seu valor relativo ou a sua finalidade. Ou seja, não mais é preciso que haja acordo entre todos os condóminos.
II. Despesas comuns
No tocante às despesas comuns, muitas são as inovações: a responsabilidade recai sobre os condóminos proprietários das frações no momento das deliberações e devem ser pagas de forma proporcional à estas.
Quanto às despesas relativas à serviços de interesse comum, fica à cargo dos condóminos aprovar, sem oposição, por maioria dos condóminos que representem maioria do valor total do prédio, disposição do regulamento de condomínio em partes iguais ou em proporção à respetiva fruição, desde que devidamente especificada e justificados os critérios que determinam a sua imputação. Enquanto antes do novo regime era necessária uma maioria de 2/3 do valor total do prédio.
As despesas que digam respeito à parte comum do prédio que seja de uso exclusivo de um ou alguns condóminos são encargos apenas aos que delas se servem. Porém, caso o estado de conservação das partes comuns de uso exclusivo afetem o estado de conservação das demais partes comuns do prédio, o condómino que tem a situação do uso exclusivo suporta o valor da reparação apenas na proporção da sua fração, salvo se tiver dado causa à reparação.
III. Reparações urgentes
Classificam-se como indispensáveis e urgentes as reparações necessárias a sanar, em curto prazo, vícios ou patologias capazes de causar ou agravar danos no prédio, conjunto de prédios, bens ou ainda que que coloquem em risco a segurança das pessoas.
IV. Assembleia dos condóminos
A assembleia dos condóminos deve se reunir na primeira quinzena de janeiro, mediante convocação do administrador, com a finalidade de discutir o orçamento anual referente ao edifício. A nova lei permite, excecionalmente, que esta reunião ocorra no primeiro trimestre de cada ano, caso haja assim previsto no regulamento do condomínio ou tenha sido aprovado por maioria da assembleia de condóminos.
Os condóminos que desejarem receber a convocatória da reunião através de correio eletrónico precisam manifestar expressamente a vontade, devendo ficar lavrada em ata a sua indicação. Sendo esta a forma escolhida, o condómino deve enviar recibo de receção do e-mail convocatório.
Ainda no âmbito da Assembleia dos condóminos, reunidas as condições que garantam a presença, no próprio dia, de condóminos que representem ¼ do valor total do prédio a convocatória poderá ser feita para trinta minutos depois, no mesmo local.
No mesmo sentido das convocatórias, as deliberações também devem ser comunicadas aos condóminos ausentes, no prazo de trinta dias, por carta registada com aviso de receção ou por correio eletrónico, caso assim tenha escolhido o condómino.
Ressalta-se que o silêncio do condómino implica em aprovação da deliberação enviada.
V. Funções do Administrador
As funções do administrador do condomínio sofreram relevantes alterações, e atribuiu-se ainda mais responsabilidades ao cargo, são elas:
Além das alterações sofridas pelo Código Civil, houve também um aditamento ao diploma legal, no que concerne à responsabilidade por encargos do condomínio.
- Verificar existência de fundo de reserva;
- Exigir dos condóminos quota-parte nas despesas aprovadas (inclusive os juros legais e as sanções pecuniárias fixados pelo regulamento do condomínio ou por deliberação da assembleia);
- Executar deliberações não impugnadas, no prazo máximo de 15 dias úteis, ou no que for convencionado, com exceção dos casos em que haja impossibilidade fundamentada;
- Comunicar aos condóminos sempre que o condomínio for citado ou notificado nas esferas judicial, arbitral, procedimento de injunção, contraordenacional ou procedimento administrativo por escrito ou via e-mail, assim como informar acerca do desenvolvimento de processos destas naturezas, semestralmente, através dos meios supracitados, com exceção dos processos abrangidos pelo segredo de justiça ou cujo conhecimento precisem manter-se em sigilo;
- Emitir declaração de dívida do condómino sempre solicitado, para efeitos de alienação da fração, no prazo MÁXIMO de 10 dias;
- Intervir em todas as situações urgentes e convocar assembleia extraordinária para validar a sua atuação;
- Obriga-se a apresentar pelo menos 3 orçamentos provenientes de fornecedores distintos, em assembleia de condomínio por motivo de obras extraordinárias ou de inovação a serem realizadas no edifício, exceto se o regulamento do condomínio disponha de procedimento diferente;
- Responde civil e, eventualmente, na esfera criminal, se aplicável, o administrador que descumprir qualquer das suas funções previstas na legislação aplicável ao tema, assim como as estabelecidas no regulamento do condomínio.
- O Administrador será sempre o representante do condomínio em juízo e, portanto, demanda e é demandado em nome daquele e poderá apresentar queixas-crime relacionadas com as partes comuns SEM AUTORIZAÇÃO DA ASSEMBLEIA.
A partir da vigência da Lei 8/2022, o condómino que celebrar alienação de fração precisa requerer ao administrador a emissão de declaração escrita, onde deve constar todos os encargos em vigor relativa àquela fração, especificar a sua natureza, montantes e prazos de pagamento, assim como as dívidas, caso existam, suas respetivas naturezas, datas de incumprimento e vencimentos.
Este documento tem caráter instrutório obrigatório da escritura ou documento particular autenticado, da alienação e apenas pode ser dispensado se o adquirente expressamente declarar no momento da formalização da alienação que aceita qualquer dívida do vendedor ao condomínio.
Salienta-se ainda que qualquer encargo relativo ao condomínio que tenha vencimento posterior à transmissão, independentemente da sua natureza, são devidas pelo novo proprietário.
NO DECRETO-LEI N.º 268/94:
I – Atas
É necessário que conste na ata de reunião um resumo do que foi discutido em assembleia de condóminos, com indicação de data, local, quais condóminos estavam presentes e ausentes, os assuntos apreciados, as decisões e deliberações com seus respetivos votos e expressamente que a mesma foi lida e aprovada.
Não restam dúvidas quanto à eficácia das deliberações, essas dependem da aprovação da respetiva ata, independentemente desta se encontrar assinada pelos condóminos.
No que toca à assinatura e subscrição, elas podem ser efetuadas através de assinatura eletrónica qualificada ou manuscrita ou ainda através de manifestação expressa por correio eletrónico enviado pelo condómino para o e-mail da administração, este último que deve ser anexado ao original da ata para plena validade.
É de responsabilidade da administração a maneira como serão colhidas as assinaturas e a sua ordem, devendo ficar assegurado a aposição de todas num único documento.
II – Responsabilidade de informar
Passa a ser um dever dos condóminos informar ao administrador do condomínio os seus dados pessoais, nomeadamente número de contribuinte, morada, contactos telefónicos, endereço de e-mail e mantê-los atualizados.
A alienação da fração por parte do condómino proprietário também deve ser comunicada ao administrador, por meio de correio registado, no prazo máximo de 15 dias a contar desta, devendo conter as informações mínimas de identificação do novo proprietário, nomeadamente nome completo e número de contribuinte, sob pena, caso o alienante incumpra, de ser responsabilizado pelos encargos e mora suportados com a identificação daquele.
III – Fundo comum de reserva
O fundo comum de reserva é obrigatório no âmbito da propriedade horizontal e tem a finalidade de custear os encargos devidos à obra de conservação do edifício ou conjunto de edifícios. A inovação trazida pela Lei 8/2022 de 10 de janeiro trata do uso do fundo para fim diverso e prevê que a liquidação deste gasto pelos condóminos deve ser feita no prazo máximo de 12 meses a contar da deliberação, com a finalidade de repor o montante utilizado.
IV – Atas
Devem constar na ata de reunião da assembleia de condóminos que delibere sobre o montante das contribuições o valor anual a ser pago por cada condómino e a data de vencimento das obrigações, esta que constitui título executivo contra o proprietário que incumprir o estabelecido para a sua quota-parte.
Estão abrangidos pelo supramencionado título executivo os juros de mora, a taxa legal dele constante e as sanções pecuniárias desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou estabelecidas no regulamento do condomínio e cabe ao administrador instaurar ação judicial de cobrança instaurada no prazo de 90 dias a contar da data do incumprimento, exceto nos casos de deliberação em contrário da assembleia de condóminos e desde que o valor devido seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil.
V – Comunicação à distância
No seguimento do que já havia sido determinado por previsão legal anterior, tendo em conta a pandemia do COVID-19, a nova lei trouxe a possibilidade de a assembleia de condóminos reunir-se à distância, preferencialmente através de videoconferência, sempre que a administração assim determine ou quando a maioria dos condóminos faça requerimento.
E ainda, compete à administração assegurar meios necessários que garantam a presença nas comunicações à distância dos condóminos que fundamentalmente não tenham condições de participar.
NO CÓDIGO DO NOTARIADO
Como já mencionado anteriormente nas atribuições do administrador e nos deveres do condómino, também no código notariado está presente a inovação trazida pela lei 8/2022 no sentido de expressamente ser necessária a apresentação de declaração acerca da situação financeira da fração junto ao condomínio nos casos de alienação desta para que o negócio tenha plena validade.
CONCLUSÕES
Consideramos positivas as alterações vislumbradas a partir das inovações trazidas pela nova Lei 8/2022 de janeiro, pois acreditamos que ela seja um reflexo do que já estava a ser observado na conduta prática do dia-a-dia e nas decisões jurisprudenciais presentes no ordenamento jurídico português acerca do assunto, estando atualmente uniformizados assuntos controversos, o que consequentemente traz segurança jurídica à matéria.
Artigo de opinião escrito pela Dra. Thais Limeira- Advogada Associada na CEG & Associados.